Das cartas pro Charlie

'Eu mal comecei a pensar no que escrever Charlie, mas essa não vai ser uma carta fácil de ler. Sabe aquele Ruffles que você tanto gosta? Aquele sabor churrasco? Deve ter nem que for um na cozinha, vale à pena ir pegar, viu? Vai ser um desabafo dos grandes esse meu Charlie.

Nem parece que já faz dois anos, dois anos que tenho a cama só pra mim. Nem parece que já faz dois anos que eu coloco um prato só na mesa na hora do almoço, ou do jantar, porque o café, você sabe Charlie, eu nunca gostei de tomar café na mesa, e ainda como em frente a tevê Charlie, vendo o mesmo maldito programa de culinária que passa às oito da manhã.

Pois é, você foi embora cedo, não é? De vez em quando tenho a impressão que a gente ficou mais tempo junto, mais tempo que a gente realmente ficou. Acho que é porque minha vida começou depois de você. Então você se foi sem nem avisar que ia, Charlie, e isso não foi nada honesto da sua parte. Porra, você foi e levou mais do que trouxe. Levou muita coisa que era minha. Levou dessas coisas que a gente só sente uma vez na vida.

Bom, agora eu sei por que essa galera solteira esculhamba tanto o amor Charlie, não dá pra sentir falta ou ter consideração pelo que nunca se teve. Antes de você eu era dessas, dessas que dizem não precisar de amor, não precisar de um par. Todo mundo tem que ter um par Charlie, um par pra toda vida. Somos que nem sapatos só dão pra ficar se for o par ideal.

Quer saber do que mais? Tem gente que vira pra mim e diz que eu sou boba, diz que já passou, que doeu mais a vida continua, grande merda, eu sei que a vida continua, e eu continuo vivendo, oras, só não quero arranjar outra pessoa. Não quero ver ninguém colocando a escova de dente no lugar onde a sua ficava. Não quero ver a toalha molhada de outro cara jogada na nossa cama, é só isso. Porque é tão difícil pra eles entenderem?

Sei que ainda to viva. Metaforicamente falando meu coração é seu, mas eu sei que ele ainda ta aqui, fazendo o trabalho dele, bombeando meu sangue. Mas a cartolina cortada em formato de coração que ta coloca no meu espelho tem seu nome dentro, escrito de batom.

O mais sacana de tudo Charlie é que eu consigo ficar bem, consigo me distrair, não todo tempo, admito. Tem horas que eu me lembro de tudo, do início ao fim, revivo tudo aqui dentro, então é como se eu estivesse tendo que me despedir de novo, só que dessa vez com uma saudade ainda maior. Tenho que me despedir sem ter me preparado pra me despedir. Isso é broxante Charlie, é como se no meio do jogo, Brasil e Argentina, Neymar cara a cara com o gol e a energia fosse embora Charlie, é isso, dá pra imaginar?

Todos os dias antes de dormir eu agradeço pelo meu dia, agradeço por ter conseguido passar por ele sem surtar. Ou, quando não choro, agradeço por isso também. Ah Charlie, a vida não é fácil, ter a caixa de correio lotada de contas pra pagar antes do fim do mês não é nada mole. Levar uma vida de cão e não receber nenhuma ração prêmio no final é triste. Quando você estava aqui, você se lembra Charlie? Do nosso primeiro mês juntos? Passamos todo o mês esbanjando, e no fim lá estava ela, a maldita caixa de correio cheia de dívidas, mas você estava comigo, e era mais fácil.

Quando você se foi parte de mim foi também, não sei se já disse isso antes, mas amar é a melhor forma de saber o que é viver. Amar é viver, Charlie. Amar é quando você se sente melhor depois de ter a pessoa amada na sua vida. E sabe... Cem pessoas podem entrar, sair, e passar pela minha vida, porque eu amo você, e não existe ninguém igual a você nesse mundo, mesmo que exista, nenhuma dessas pessoas terá o meu amor Charlie, ele é só seu e de mais ninguém. Amor que é amor não muda, não troca de endereço. Amor que é amor dura, dura pela eternidade, e a gente se encontra em outra vida, porque eu ainda não consigo acreditar que a gente tenha parado por aqui Charlie.

Pra mim o mundo é tão medíocre quando eu penso em você e nas coisas que a gente viveu, e também nas coisas que eu queria ter vivido.

Chegou a hora de parar de escrever, não é Charlie? Desculpa pela brincadeira do Ruffles, eu sei que você deve ter dado uma risadinha, é que eu escrevi pra você comendo o último pacote que tinha Charlie. Agora ainda vou ter que comprar umas flores e umas velas pra você, e levar-te-ei junto da carta.'

– Desculpe Charlie, não consegui terminar a cara, o cemitério vai fechar daqui a pouco e eu tive que vir correndo pra ver se dava tempo de lê-la pra você, como eu sei que você é a preguiça em pessoa na hora de ler e iria parar antes mesmo de chegar à metade. Faz exatamente dois anos que você se foi Charlie, e isso ainda dói tanto, e vai doer em todos os próximos dois anos que virão Charlie.

Ela se levantou e sem olhar pra trás deixou o cemitério, o que foi melhor, porque se tivesse olhado, veria Charlie com lágrimas nos olhos e a carta nas mãos, vendo a última frase que ela não lera:

– P.s.: Eu vou te amar pra sempre, Charlie.

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